A não sujeição das obrigações derivadas de atos cooperativos, inclusive, das cooperativas de crédito, aos efeitos da recuperação judicial
Por Alessandra Guimarães Ferreira Magalhães
A Lei da Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005) prevê um conjunto de mecanismos legais para a solução de crises empresariais, buscando a preservação da atividade econômica, geração de renda e emprego, bem como, a satisfação coletiva dos credores.
No entanto, de acordo com a mesma Lei, determinados contratos e obrigações não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, como ocorre com o ato cooperativo praticado entre as cooperativas e seus cooperados, cuja sujeição foi excepcionada pelo comando do § 13º, do artigo 6º, introduzido ao texto original pela Lei 14.113/2020, que assim dispõe:
§ 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971 (…)”
De acordo com o artigo 79 da Lei nº 5.764/1971 (Lei Geral do Cooperativismo): “denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais”.
Do comando dos artigos 3º e 4º da referida Lei extrai-se que as cooperativas são sociedades com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, que são pessoas que, reciprocamente, se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.
Diferentemente do que ocorre numa sociedade mercantil, na cooperativa o foco principal é atender as necessidades dos membros, que são ao mesmo tempo donos e clientes, participam democraticamente na gestão da sociedade com direito de voto, independentemente do valor de suas cotas, e o lucro é distribuído entre todos de acordo com a utilização dos serviços da sociedade.
Em razão da importância para o desenvolvimento econômico e social do indivíduo, o § 2º do artigo 174, da Constituição Federal impõe ao Estado, como agende normativo e regulador da ordem econômica, prevê a adoção de uma política pública que proteja e estimule o cooperativismo.
Ao excepcionar o ato cooperativo, o legislador atendeu referido mandato constitucional, inclusive, expondo nos motivos para a inserção do parágrafo 13 sob o artigo 6º da LREF, o fato de que, as medidas previstas no procedimento legal de recuperação de empresas poderiam até culminar na preservação da saúde econômica e financeira de seus cooperados, no entanto, ao mesmo tempo, poderiam representar risco de dissolução da própria sociedade e, consequentemente, um prejuízo a todos os associados, que são solidariamente responsáveis pelo cumprimento das obrigações da sociedade, que, por sua vez, não podem utilizar do mesmo mecanismo da recuperação judicial.
Em outras palavras, o descumprimento das obrigações por parte de um cooperado, acabará recaindo sobre todos do quadro social da sociedade, caracterizando indevida responsabilização de terceiros pelas obrigações do sujeito ou da pessoa jurídica que se beneficiou dos mecanismos da recuperação judicial.
Contudo, apesar de expressamente previsto na Lei, na prática, alguns administradores judiciais e magistrados insistem em incluir créditos oriundos da relação entre cooperativas e seus cooperados baseados em interpretações da norma, principalmente, no que se refere as cooperativas de crédito, sob o pálio de se equipararem a instituições financeiras, o que não coaduna com a legislação pátria, porque, “a relação jurídica estabelecida entre a cooperativa e seus associados na realização de seu objeto social, possui atributos próprios e não perde sua natureza de ato cooperativo apenas por se tratar de operação financeira ou bancária ou por existir oferta de bens ou serviços semelhantes no mercado, até mesmo porque o artigo 79 da Lei 5.764/97, não exclui as operações de mercado do conceito de “ato cooperativo”[1], inclusive o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido que os empréstimos realizados pelas cooperativas de crédito aos cooperados constituem atos cooperativos.
Por fim, convém salientar que a excepcionalidade se aplica tão somente as recuperações judiciais deferidas após o dia 26 de março de 2021, quando entrou em vigor a Lei 14.112/2020, que introduziu o § 13º, ao artigo 6º da LRJF, conforme reiterados julgados dos tribunais pátrios, dentre os quais o proferido no agravo de instrumento n. 2013438-59.2023.8.26.0000, da relatoria do Des. Ricardo Negrão, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que resume de forma excepcional o exposto nesse artigo, senão vejam:
“IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO (RECUPERAÇÃO JUDICIAL) – Decisão judicial que, com fundamento no art. 6º, § 13 da LREF, acolheu o incidente para determinar a exclusão do crédito arrolado em nome da agravada no quadro geral de credores – Alegação de que a operação financeira não pode ser considerada “atos cooperativos”, pois o crédito elencado está lastreado em cédulas de crédito bancário, típicas operação financeira praticada pelo mercado, devendo ser afastada a exclusão – Descabimento – A data da distribuição do pedido de recuperação judicial ocorreu em 11/2/2022, é posterior à da vigência do disposto no § 13º do art. 6º da Lei n. 14.112/2020, ocorrida em 26 de março de 2021 – Inteligência do art. 5º, § 1º, inc. II da Lei n. 14.112/2020 e do art. 14 do CPC – Hipótese na qual, os negócios jurídicos discutidos decorrem exclusivamente do vínculo de associação existente entre as partes, tanto que, uma vez cessado o vínculo, há o vencimento antecipado dos créditos, consoante disposto nos respectivos títulos, sendo certo ainda que a agravada é uma cooperativa de crédito – Reconhecimento de que tratarem-se de atos cooperativos – Decisão Mantida – Agravo de Instrumento não provido” (data do julgamento 05/04/2023)
Portanto, se o texto do § 13º, do artigo 6º, da LRJF não faz qualquer distinção do ato cooperativo pelo ramo de atividade da sociedade para que seja aplicada a excepcionalidade de incidência dos efeitos da recuperação judicial e falência, entendo que as decisões contrárias violam não somente o referido dispositivo, mas, o mandamento constitucional do dever de apoio e estímulo ao cooperativismo.
[1] TJSP. AI 2235693-61.2022.8.26.0000. Rel. Des. Ricardo Negrão. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data julgamento 17/02/2023.